Este trabalho analisa "O Regresso do Morto" de Suleimann Cassamano. Porquê analisar a oralidade e seus valores subsequentes? A carga de oralidade que impregna O Regresso do Morto é um facto inegável. Disso é elucidativa a riqueza linguística da obra. De facto, notam-se diferentes maneiras de escrever, de falar, de pensar. Estes aspectos enquadram as estratégias de escrita do autor que parece priorizar o domínio oral. Uma vez que o escritor utiliza o português e a língua ronga nos seus contos, vai ser importante verificar como se efectuam as interferências linguísticas e textuais, examinar igualmente o registo léxico-semântico. Pela dinâmica do texto, analisaremos o motivo pelo qual a preocupação estética de Suleiman Cassamo recai sobre a escolha de uma escrita falada. Dada a ocorrência elevada de nomes ronga, e tendo em conta o papel desempenhado pela onomástica na marcação de uma especificidade etnocultural, entre outros, observaremos o funcionamento do nome de algumas personagens.
As análises feitas permitem-nos afirmar que no plano linguístico as interferências da língua e da cultura são quase necessárias. O problema não é simplesmente o da transposição de uma língua oral para uma língua escrita, envolve também a visão global da obra, a ideia da literatura em Moçambique, a questão da comunicação e da interculturalidade. A passagem das realidades orais para a escrita em português faz-se sem atritos, o português impregna-se da sensibilidade africana. Pela língua que utiliza, o autor mostra estar consciente da mutação linguística que ocorre em Moçambique. Mesmo se o livro está marcado culturalmente por "efeitos" da língua ronga e da língua portuguesa falada localmente, o texto é legível para todos os leitores de língua portuguesa.
Abreviaturas e Siglas
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Prefácio
Falar da ingratidão da tarefa do prefaciador não tem nada de original. Mas, mesmo correndo o risco da repetição do já sobejamente referido, não vejo como contornar essa verdade. Explico-me: primeiro, o prefácio corre o risco de ser ou de parecer a legitimação, pura e simples, da obra que por si não se consegue sustentar; segundo, o prefácio pode ser a priorização de uma leitura, a do prefaciador, que é apenas mais uma de entre as múltiplas possíveis e legítimas; terceiro – sobretudo quando se assume como uma apresentação do livro –, o prefácio pode ser a grosseira (porque mera repetição do que o autor diz, e melhor, e que o leitor poderá ler directamente) usurpação do lugar da obra prefaciada. Há estas razões e um sem número de outras para fundamentar a ideia da ingratidão da tarefa do prefaciador.
Quando se me colocou o desafio deste prefácio, procurei o difícil compromisso entre redigi-lo efectivamente e evitar cair nos perigos que acima citei, e, por outro lado, achei que ele me poderia servir de pretexto para falar um pouco de um aspecto da literatura moçambicana poucas vezes falado: o do lugar da crítica e dos trabalhos académicos.
Com efeito, a propósito deste trabalho de Herculano Thumbo duas coisas me vêm à mente. A primeira diz-me que cada vez mais os moçambicanos vão ocupando o espaço que lhes cabe na reflexão sobre a literatura feita em Moçambique. A segunda diz-me que cada vez mais escritores com mérito se tornam objecto dessa reflexão.
Na verdade, ao longo destas duas décadas em que temos vindo a reflectir sobre a literatura moçambicana colocamos no centro das nossas atenções o texto literário (o poema, o conto, o romance). Discutimos a questão da moçambicanidade e procuramos vê-la sempre na perspectiva da obra literária e do escritor que lhe deu origem, esquecendo muitas vezes que o sistema literário, como tal, não se resume a isso. Se quisermos entender a literatura como instituição social teremos de reconhecer também o papel reservado a muitos outros actores, de entre eles os leitores, os críticos, os editores, as academias. O escritor será apenas aquele que começa, desencadeia o processo literário, mas esse processo assim iniciado terá sido em vão se outras etapas não forem atingidas e outros actores não tiverem a sua intervenção.
Algumas das mais acesas discussões em torno da literatura moçambicana ou de Moçambique, que se vêm desenvolvendo desde a década de 60 do século passado giraram em torno de “que obras podem ser moçambicanas?”, “que autores são moçambicanos?”. Discutiu-se mesmo se a literatura moçambicana começou no século XIX ou se no século XX. E se no século XX, em que década. E tudo teve sempre a ver com o escritor e a obra. Timidamente, algumas vozes levantaram a questão que faltava: para quem escreviam os autores que pela primeira vez afrontaram o sistema colonial e procuraram afirmar a sua autonomia? E a resposta parecia óbvia, para o próprio leitor colonial; ou seja, a primeira literatura moçambicana só o era na escrita, que na leitura já não o era. O sistema era ainda defectivo. Perante o cenário, também timidamente, adiantaram: a literatura moçambicana, enquanto instituição social mesmo, não tinha ainda existência plena.
Nas últimas décadas do século XX, com a relativa expansão da escolarização, acentuada pelas políticas adoptadas depois da independência, o sistema incorporou o leitor nacional, mas havia ainda muito que caminhar: a crítica, a reflexão académica vinha de fora, e mesmo as primeiras edições de uma boa parte dos autores mais conhecidos da literatura moçambicana (José Craveirinha, Rui Nogar, Sebastião Alba, Carneiro Gonçalves, Albino Magaia, Luís Carlos Patraquim, só para citar alguns) foram produzidas fora. Em grande medida, os mecanismos da consagração na literatura moçambicana dependiam de um olhar externo e, por conseguinte, os próprios contornos da nossa literatura eram traçados na base desse mesmo olhar. Até finais dos anos 80, não era raro o escritor moçambicano pedir a opinião do académico estrangeiro, muitas vezes o seu aval e o seu prefácio.
Na segunda metade da década de 80, com o surgimento de espaços como a Charrua, a “Gazeta de Artes e Letras” da Revista Tempo alguma crítica vai fazer ouvir a sua voz. Nessa mesma onda, surgem os primeiros Prémios Literários: o sistema vai-se compondo. Mas vai ser na década de 90 que a literatura moçambicana vai começar a ocupar o espaço da reflexão académica, através de teses e dissertações apresentadas em universidades estrangeiras e, mais tarde, também em universidades moçambicanas. É justamente neste conjunto que se enquadra esta obra de Herculano Thumbo. Ela é mais um testemunho da solidez que a literatura moçambicana vai ganhando, ao multiplicar a capacidade endógena de se examinar e de se configurar, uma vez que é cada vez mais o olhar interno que a analisa, que a qualifica.
Mas esta obra não é só um número, não pode ser vista apenas como uma unidade acrescida no conjunto. Ela acrescenta e aprofunda o sentido que a escola moçambicana dos estudos literários vem seguindo: o do exame da medida e do valor que se dá ao resgate da tradição oral pela literatura escrita. Esta linha de reflexão, cuja pertinência se pode aferir tanto da quantidade de trabalhos que nela se filiam, como também da sua diversidade, fica agora enriquecida pelo estudo de uma das figuras mais importantes da geração de escritores moçambicanos da década de 80: Sulemane Cassamo. Esta linha enriquece-se também pela abordagem de uma das características mais notáveis deste escritor, a “oralização da escrita”, ou, como diz Herculano Thumbo, “a escrita falada” que me lembro de Sulemane caracterizar como sendo, em 1987, numa entrevista que concedeu à Gazeta de Artes e Letras, “o nosso povo a falar na primeira pessoa”...
Muito mais poderia escrever sobre o que Sulemane escreveu e sobre o que Herculano escreveu, mas, em ambos os casos, o meu texto seria um exercício ridículo, porque sobre Sulemane quem aqui escreve é Herculano, e, quanto a Herculano, escreverá o leitor depois de o ler. Quanto a mim, para não priorizar a minha leitura sobre as outras e para não usurpar e deturpar o espaço do autor, limitar-me-ei a dizer que cresce a literatura moçambicana quando os nossos autores são estudados com o rigor que a academia impõe, e cresce a literatura moçambicana quando quem os estuda somos nós.
Maputo, 8 de Setembro de 2005
Gilberto Matusse
Nota do Autor
Produto de uma investigação, o presente trabalho foi concluído em Junho de 1996 em contexto académico com o título A Presença da Tradição Oral Africana em O Regresso do Morto de Suleiman Cassamo, e com a finalidade de obtenção do grau de Licenciatura em Letras, Línguas de Civilizações Estrangeiras pela Universidade de Poitiers, em França.
A publicação mantém as linhas fundamentais daquilo que eram os meus pontos de vista sobre o assunto, embora contenha algumas alterações motivadas pela versão em livro. Assim, foi modificado o primeiro capítulo, retirados outros dois, excluídos alguns anexos e notas de rodapé, e introduzido um novo título à obra: A Expressão Desnudada: Estudo da Tradição Oral Africana em O Regresso do Morto de Suleiman Cassamo .
Este trabalho só foi possível graças ao apoio de várias pessoas. O meu primeiro agradecimento vai para a Professora Ria Lemaire, não só por ter dirigido esta pesquisa, mas também pelos seus inestimáveis conselhos e pelo seu espírito crítico.
Meus sinceros agradecimentos à Professora Annick Moreau cujo encorajamento foi precioso ao longo destes anos de estudos superiores, aos professores do Departamento de Português pelo empréstimo de documentação diversa e pelas informações complementares fornecidas e ao Governo francês pelo apoio financeiro por intermédio do Centre International des Etudiants et Stagiaires (CIES)1, que foi capital para chegar ao nível deste diploma.
Obrigado igualmente à Professora Walnice Nogueira Galvão pela sua confiança e apoio moral concedidos.
Finalmente, uma dedicação muito especial à minha esposa Suzete, várias vezes privada do meu amor, que sacrificadamente me apoiou na elaboração e, agora, carinhosamente, encorajou-me para a publicação desta dissertação. Beijinhos aos meus filhos Denise e Júnior.
Introdução
Este trabalho tem por objectivo estudar as marcas das tradições orais africanas na obra de Suleiman Cassamo, através da análise do(s) factor(es) que determina(m) tais ocorrências e o impacto produzido em termos literários. Porquê analisar a oralidade e seus valores subsequentes?
A carga de oralidade que impregna O Regresso do Morto é um facto inegável. Disso é elucidativa a riqueza linguística da obra. De facto, notam-se diferentes maneiras de escrever, de falar, de pensar. Estes aspectos enquadram as estratégias de escrita do autor que parece priorizar o domínio oral.
Não menos importante é a questão da procedência do texto. Independentemente, há 33 (trinta e três) anos, Moçambique é um país cuja literatura emerge de uma situação colonial. Isso significa que, tal como em muitos países africanos, em Moçambique, a escrita, como arte de escrever, constitui um modelo importado recente. O modelo da escrita encontrou uma tradição ancestral de oralidade, elemento essencial, mas não o único, da comunicação nas sociedades africanas.
Por diversas razões ligadas à política colonial, a expansão da escrita foi um processo lento. Os primeiros núcleos literários surgiram nos princípios do século passado, mas a tipografia só foi introduzida em 1854, ano em que apareceram os primeiros jornais oficiais2. Além de impulsionar a actividade literária, o aparecimento da imprensa contribuiu, ao longo do tempo, para a estabilização da cultura de escrita, embora somente no seio de grupos restritos. Se, por um lado, o desenvolvimento da escrita foi moroso e localizado, por outro lado, o desenvolvimento do ensino foi igualmente lento. As primeiras escolas de carácter não missionário foram criadas no início do século XIX, dentro do espírito da política de assimilação3.
Os reflexos dessa política de exclusão fazem-se sentir ainda hoje, pois apenas cerca de 25% da população pode reger-se pelo sistema escrito. Neste quadro, a oralidade torna-se tão importante quanto outrora. As línguas bantu, essencialmente orais, veiculam culturas das quais os escritores são oriundos. A oralidade constitui, portanto, um dos aspectos mais importantes da literatura moçambicana. O peso da tradição oral é omnipresente: no modo de dizer, no pensamento, nas actividades culturais e artísticas. Actualmente, para se compreender o sentido da escrita moçambicana, torna-se importante passar pela oralidade.
Nos estudos literários mais recentes destaca-se, geralmente, a relação entre a tradição escrita importada pela colonização europeia e a tradição oral local. Esta análise da relação entre o oral e o escrito leva-nos a seguir, no nosso estudo, a metodologia comparatista, tendo em conta a situação social, cultural e linguística do país.
O estudo vai ser apresentado segundo um critério que o divide em seis etapas. Uma vez que a língua expressa, até certo ponto, a cultura do grupo social, no primeiro capítulo daremos o devido relevo a alguns aspectos da cultura ronga, a cultura essencial do autor. Num segundo momento, procederemos à descrição da vida do autor evidenciando pormenores que, directa ou indirectamente, peculiarizam a sua escrita. Embora qualquer biografia de feição narrativa implique uma atitude selectiva, procuraremos fazer menção de todos os eventos, sem esquecer aqueles que podem ser considerados irrelevantes.
Antes da análise dos factos que condicionam e orientam a actividade criativo-literária do escritor, reflectiremos teoricamente sobre o conceito de Tradição Oral. Discutiremos algumas posições relativas à oralidade em África e em Moçambique. Os estudos sobre o assunto não constituindo uma posição comum, algumas opiniões como as de Louis-Jean Calvet e de Paul Zumthor, ganharam contudo prestígio neste domínio.
Uma vez que o escritor utiliza o português e a língua ronga nos seus contos, vai ser importante verificar, no capítulo quatro, como se efectuam as interferências linguísticas e textuais, examinar igualmente o registo léxico-semântico. Pela dinâmica do texto, “contos curtos como um relâmpago, moçambicanos e, sobretudo, rongas até à medula”4, vamos ver o motivo pelo qual a preocupação estética de Suleiman Cassamo recai sobre a escolha de uma escrita falada. Para terminar, dada a ocorrência elevada de nomes ronga, e tendo em conta o papel desempenhado pela onomástica na marcação de uma especificidade etnocultural, entre outros, observaremos o funcionamento do nome de algumas personagens.
Conscientes das limitações deste trabalho, não pretendemos operar aqui um retorno às origens, mas sim avaliar o modo como se efectua a representação da tradição oral, tendo em conta que grande parte da população de Moçambique se rege pelo sistema oral.
Capítulo 1: Aspectos da Cultura Ronga
1. Expansão e fixação Bantu
Tal como na maioria dos países africanos, sobretudo a sul do Equador, a formação das sociedades moçambicanas resultou da organização social das comunidades saídas da expansão e fixação Bantu5. A partir dos anos 200-300 da Nossa Era, vários grupos populacionais foram chegando gradualmente ao actual território de Moçambique, povoando as baixas fluviais costeiras, as encostas e os planaltos do interior. Esses grupos, que vinham provavelmente da orla noroeste das grandes florestas congolesas, foram substituindo a chamada comunidade «primitiva» dos Khoisan6, na qual predominavam actividades tais como a caça e a pesca. Apesar da controvérsia quanto à proveniência exacta desses povos, o processo ficou conhecido por Expansão Bantu:
A palavra Bantu tem uma conotação quase exclusivamente linguística e surgiu em 1862, sob proposta do linguista alemão Bleek, para assinalar o grande parentesco de cerca de 300 línguas, as quais utilizavam todas esse vocábulo para designar «os homens» (singular Muntu). Não existe, pois, uma «raça Bantu»7.
Dois grandes tipos de sociedades surgiram na região de Moçambique: sociedades nas quais as contradições sociais originaram Estados e sociedades organizadas em simples chefaturas. A partir do século VI, comerciantes árabes estabeleceram-se na costa com o objectivo de explorar o ouro existente, desenvolvendo desde logo relações comerciais com as sociedades bantu.
Após a expansão Bantu8 e antes da penetração colonial portuguesa, principiada no século XVI, as sociedades moçambicanas apresentavam diversas características, das quais destacamos as mais marcantes9.
A nível da produção: a base fundamental da economia consistia na agricultura de cereais, principalmente mapira e meixoeira. Em algumas regiões a sul do rio Zambeze, essa actividade económica era acompanhada pela criação de gado bovino. Tanto a norte como a sul desse rio, a recolecção constituía um contributo indispensável à dieta alimentar.
A nível das relações de produção: as unidades de produção da comunidade aldeã constituíam-se em torno de um grupo de parentes consanguíneos, definidos por via paterna a sul do rio Zambeze e por via materna a norte. A divisão do trabalho fazia-se na base do sexo e da idade. A maioria dos agricultores era formada por pessoas livres que produziam para a família alargada. Como produtoras, as mulheres detinham uma certa autoridade e controlo sobre os celeiros, mas estavam geralmente excluídas da posse de bens mais valiosos e duradoiros, como o gado.
A nível da organização política e social: à frente de cada linhagem ou da família alargada estava um chefe com poderes políticos jurídicos e religiosos, e um conselho de anciãos. No plano territorial, estruturava-se um poder político mais vasto do que o poder linhageiro, originado quer na conquista militar, quer na anterioridade de ocupação do território. Diferenciações regionais de índole linguística, costumeira e outros, bem como de carácter político com o aparecimento de reinos ou de chefaturas, começaram a surgir devido ao desenvolvimento das trocas comerciais, das migrações e das guerras.
A nível ideológico: as crenças mágico-religiosas desempenharam um papel importante constituindo uma arma fundamental do poder, da coesão social e da aparente imobilidade. Os chefes das linhagens e os chefes territoriais imploravam aos antepassados, para si e para a sua comunidade, as chuvas, a saúde, a protecção para a caça e para as viagens. A forma como os homens se julgavam relacionados entre si e com a natureza encontrava expressão figurada na feitiçaria.
Embora a existência de Estados não tenha sido um fenómeno generalizado antes do início da fase colonial, houve, por exemplo, dois reinos onde o Estado sobrepôs-se à comunidade aldeã. Em primeiro lugar, o Estado do Zimbabwe, que existiu aproximadamente entre 1250 e 1450, no qual a classe dominante fez rodear as suas habitações de amuralhados de pedra10. Em segundo lugar o Estado dos Monomotapas. Cerca de 1450, o Grande Zimbabwe foi abandonado pela maior parte dos seus habitantes. Na sequência da invasão e da conquista do norte do planalto zimbabweano, desenvolveu-se, entre rios Mazoe e Luia, o centro de um novo Estado chefiado pela dinastia dos Monomotapas. Os limites do território organizado por esta dinastia estendiam-se do Zambeze ao Limpopo e do Kalaari ao Índico.
Mostrámos assim de forma sucinta os elementos essenciais que marcaram o longo e lento período de fixação dos povos bantu. Embora não seja possível dissociar completamente a história destes reinos da história da região do Sul do Save11, não é relevante, para o nosso trabalho, entrar em pormenores sobre estes Estados, pelo simples facto de eles se situarem a norte de Moçambique, região oposta àquela que nos interessa, que é o sul. A maioria dos nativos do Sul do Save pertence ao grupo Tonga (Thonga), o qual se divide em Rongas, Changanas e Tsuás. No sul de Moçambique, foi de crucial importância o Império de Gaza, que teve como último rei Ngungunhane12.
Pela sua proximidade, os povos deste e de outros reinos que se situavam fora das actuais fronteiras de Moçambique, contribuíram e constituíram a base de formação etnográfica e cultural do povo ronga, que se desenvolveu na região de Lourenço Marques, hoje chamada Maputo.
2. A região de Maputo
2.1. Elementos históricos, etnográficos e linguísticos
Os rongas fazem parte de um grupo étnico outrora conhecido por Landim e modernamente por Tsonga, ocupando em território moçambicano as regiões de Maputo e Gaza. Esse povo teve o seu período formativo durante os séculos XVI e XVII, em que se verificou a interpenetração selectiva de contributos culturais e linguísticos Sothos, Chonas e Angunes (zulos e swázis), melhor adaptados aos condicionalismos da região do Sul do Save13.
Dos intensos movimentos migratórios desencadeados ao longo da história, surgiram diversos clãs que se espalharam pela região. No entender de Henri Junod citado por António Rita-Ferreira14, as primeiras imigrações de clãs proto-sothos para a foz do Incomáti e para as terras que circundam a baía de Maputo, deram origem, inicialmente, a três unidades políticas distintas: Mpfumo, Manhiça e Lebombo.
Também anterior ao advento colonial português, mas de origem chona-caranga, foi a imigração do clã Tembe que se fixou na margem meridional da baía de Maputo. O clã Inhaca, reino relativamente extenso no século XVI, controlava todo o território a leste do rio Maputo e igualmente uma área considerável em direcção ao sul.
Estas e outras migrações anteriores a 1500 podem ter sido provocadas pelas prolongadas lutas e transformações económicas que nessa época se desenvolveram nas regiões auríferas do planalto interior, pela decadência do reino do Zimbabwe e ainda por uma possível relação com o desinteresse pelas actividades extractivas provocado pela queda vertiginosa das cotações do ouro no mundo islâmico. Entre os vários reinos já se observava alguma homogeneidade descrita por missionários jesuítas, que foram os primeiros estudiosos das tradições moçambicanas. As características de maior destaque desse modelo cultural eram as seguintes:
- uma monarquia centralizada e poderes pluviais15 do monarca,
- a estratificação social com predominância dos caçadores, comerciantes e adivinhos,
- o apreço pela carne de bovinos e animais de grande porte,
- o menosprezo das tarefas agrícolas,
- o desconhecimento da prática da circuncisão,
- a existência de ferreiros e tecelões,
- a avidez da classe dominante por missangas,
- o interesse régio pelo comércio externo.
A interpenetração coincidiu com o incremento dos contactos e do intercâmbio comercial com o mundo exterior, que teve o seu resultado mais duradoiro representado na introdução de novas plantas alimentares e de alguns artigos considerados como fonte de poder e de prestígio. Entre as plantas de origem asiática, o arroz veio a assumir grande valor. No vale do Incomáti, o seu cultivo era rodeado de tabus que atestam a sua grande antiguidade. O algodão, introduzido possivelmente pelos arabizados, teve também a sua influência na cultura tsonga. A tecelagem constituiu uma actividade tradicional que se manteve até finais do século XIX, apesar da concorrência movida pelos tecidos importados da Ásia e da Europa.
Outra espécie de origem asiática que se integrou completamente na cultura tsonga foi o estupefaciente conhecido por mbangue, em língua ronga, suruma em português, cannabis sativa, em latim. A antiguidade da introdução infere-se da sua inclusão nos mitos de origem e na actividade lúdica, e ainda da aceitação do consumo pela comunidade no interior.
A difusão de outras tantas plantas da mesma origem como a bananeira, o coqueiro, a mangueira e os citrinos, foi prejudicada pelo tabu segundo o qual era proibido o plantio de árvores ditas exóticas. A «revolução verde» foi alcançada sobretudo com plantas de origem americana, cujas vantagens foram depressa percebidas. O cajueiro, o rícino, a goiabeira, são exemplos de plantas arbóreas que se propagaram espontaneamente, e em curto espaço de tempo pelas diferentes comunidades.
A evolução da cultura tsonga, geralmente devido a forças externas, não marcou apenas a vida agrícola, mas também o sistema familiar e social. Da fusão da população aborígene com os invasores Angunes anteriores à chegada dos portugueses, resultaram traços comuns a todo o grupo tsonga. Traços culturais há, no entanto, que diferem de um subgrupo para outro, explicando-se alguns, por maior ou menor influência dos invasores zulos do século XIX, e outros, por maior ou menor grau de intensidade de convívio com os portugueses. A proximidade da capital parece ter protegido os rongas da influência dos invasores, mas fez com que, desde há muito, desaparecesse grande número de tradições antigas, pela convivência com a cultura portuguesa.
A criação de bovinos, por exemplo, foi introduzida pelos Angunes, uma actividade que impregnava a sua cultura. Os complexos e prolongados cerimoniais de integração na vida adulta, baseados em fórmulas esotéricas, aludiam constantemente à fauna selvagem. Também a ciência considerada do «mato» e os métodos de perseguição e abate, constituíam parte essencial da transmissão de conhecimentos. Contudo, entre as actividades venatórias, nenhuma atingiu desenvolvimento comparável à que visava os elefantes, como sugere Rita-Ferreira:
Não será exagero afirmar que desde 1500 a 1900, só na região compreendida entre o Save e o Maputo e entre a orla marítima e a cordilheira dos Libombos, o número de elefantes abatidos tenham ultrapassado largamente a cifra de um milhão.16
Como a caça, o comércio a longa distância tornou-se uma verdadeira instituição social, aumentando as possibilidades de diferenciação económica e social. Para esta evolução, contribuiu decisivamente o sistema de parentesco com os princípios de solidariedade e comunhão de propriedade entre irmãos e os direitos absolutos e proeminentes concedidos à primogenitura e à senioridade. Estas características genéricas atribuídas às comunidades tsonga podem ter sido, com maior ou menor vigor, aspectos que particularizaram inicialmente as comunidades ronga.
Os Estados da margem sul exerciam uma supremacia sobre os outros, pois actuavam como intermediários quase exclusivos entre as densas populações que habitavam as escarpas do Drakensberg (na África do Sul) e os diversos traficantes que ofereciam tecidos, missangas e ornamentos em troca de marfim, âmbar e pontas de rinoceronte. No século XVI, o Inhaca constituiu um reino relativamente extenso. Controlava todo o território a leste do rio Maputo e também uma área considerável em direcção ao sul.
Do material que consultado, ressalta um aspecto importante da estrutura política dos rongas. Embora o primogénito fosse legalmente o sucessor, era comum surgirem pretendentes a desafiar esta norma consuetudinária. As rivalidades conduziam com frequência a lutas armadas. Para combater essa tendência, alguns chefes partilharam com os herdeiros o exercício do poder, mas esta atitude não foi, por si só, suficiente para evitar disputas. Assim, da fragmentação de determinados reinos, surgiram alguns clãs. No caso do reino de Inhaca, o estudioso Rita-Ferreira consubstancia a posição dizendo:
Um tal Inhaca Manganheira conseguiu separar-se do núcleo principal, chefiado por Inhaca Sengane, passando ulteriormente a ser conhecido por Machavane. Mais tarde, esse núcleo central bipartiu-se em Inhaca Grande e Pequeno.17
Devido à desintegração, as tribos de extracto Inhaca conseguiam resistir com dificuldade ao poderoso vizinho, o reino de Tembe. Na margem norte, mantiveram-se o Mpfumo e o Matsolo, mais tarde popularizado sob a forma Matola, que se mantém até hoje, embora com dimensão territorial e populacional inferior ao Manhiça e Mabjaia (Magaia).
Com o declínio da presença portuguesa no Oceano Índico e a abertura da África Oriental ao comércio internacional, a baía do Espírito Santo começou a ser frequentada pela navegação de outras nações europeias (Holanda, França e Inglaterra). No século XVII a baía encontrava-se transformada num dos mais importantes centros da África Austral, progresso que não se deveu apenas às actividades mercantis dos europeus, mas também ao desabrochar da capacidade «empresarial» entre os próprios autóctones. Entretanto, nas unidades políticas rongas verificaram-se algumas transformações. De 1726 a 1729 agravaram-se os conflitos intertribais. O rei de Tembe absorveu as terras de Machavane e depois as de Inhaca, monopolizando as trocas comerciais entre a baía e as regiões meridionais. Por volta de 1750, evidenciou-se Nuangobe, rei de Tembe que conseguiu alargar o seu domínio das praias oceânicas até aos montes Libombos e da margem sul da baía até uma distância de doze dias de marcha para o sudoeste. O poderoso rei de Matola, apenas superado pelo Tembe, conquistou terras ao Mpfumo e ao Mabjaia, e até aos Sothos situados ao ocidente.
Graves incidentes marcaram as relações entre os portugueses, que em 1784 tentaram reocupar a baía, e os clãs Tembe e Matola que não abdicavam dos seus direitos de soberania. Dos finais do século XVII até à invasão dos Ngunis-Nduandés, chefiados por Sochangana-Manucusse, fundador do Império de Gaza, as migrações rongas internas foram mais raras e em distâncias mais curtas, mas envolveram maiores massas populacionais. Isso pode explicar-se pelo robustecimento e pela estabilização das unidades políticas, e ainda pelo explosivo crescimento demográfico. Para além do efeito directo das invasões, julgamos que o aumento drástico da população foi igualmente impulsionado pela presença asiática, como se pode deduzir deste excerto:
Devem reportar-se a esta época as tradições orais que recordam a existência de pangaios, bem como a fixação de muçulmanos, que foram os primeiros a efectuar de modo sistemático a exploração comercial da região, aprendendo as línguas locais e casando-se com mulheres africanas.18
As trocas comerciais com a baía de Maputo tiveram importância fundamental na expansão militarista dos Ngunis19, que preferiram a política de dividir para reinar. Os grandes reis-guerreiros não hesitaram em assumir o monopólio das transacções com o exterior, punindo os infractores com saques e massacres. A distribuição de artigos importados foi factor relevante no reforço do poder central.
As invasões Ngunis, iniciadas em 1821, trouxeram importantes consequências na história dos reinos e das tribos rongas da baía: as ligações entre os Maputos e Zulos de Chaca foram bastante harmoniosas; derrota do rei Tembe que se retirou para o vale do Incomáti, sob conselho dos portugueses; os Matolas e Moambas optaram pela submissão incondicional. Resultantes das incessantes incursões enviadas por Tchaca contra os seus dois rivais na baía (Tembe e Maputo), as terras dos rongas sofreram terríveis devastações. Só em 1824 a calamitosa sucessão de guerras atingiu o seu fim, não sem que os Tembes viessem a sofrer um derradeiro ataque dos Ngunis. Mas, as intermináveis disputas de sucessão e as guerras entre monarcas rivais prosseguiram até aos princípios do século XX.
Além dos aspectos mencionados, julgamos que o povo ronga também se caracteriza pelos seguintes aspectos:
a) as habitações são circulares feitas de caniço e palha, e muitas vezes rebocadas à volta com matope e terra vermelha;
b) a organização social centra-se no núcleo básico;
c) a actividade do homem encontra-se de certo modo regulamentada;
d) no casamento, a mulher vai viver para a casa do marido;
e) à mulher estão «reservadas» as funções de procriação e gestão da subsistência da família.
Este último item leva-nos a afirmar que, na sociedade tradicional moçambicana, a mulher constitui o sustentáculo dos lares, visto que ela se ocupa da produção agrícola, da busca e transporte de água, da recolha e transporte de lenha, dos trabalhos domésticos e participa nas tarefas comunitárias.
Interdita de chefiar a família no quadro das normas costumeiras, na prática, ela tem estado à frente da família, mas muitas delas não o ressentem como tal, isto é, não consideram que desempenham um papel fulcral no seio da família20. Apesar desta posição relativamente melhor para a gestão dos recursos, pois cabe-lhe conceber e praticar estratégias de subsistência familiar, a mulher vê-se ignorada pelo homem nesta estrutura básica tradicional e, em alguns casos, mesmo pelos políticos e planificadores. As relações homem-mulher na família e na sociedade, estão longe, pelo menos a nível das zonas rurais, de atingir a projectada emancipação da mulher moçambicana, se bem que constitucionalmente21 esteja consagrado o princípio de igualdade de direitos entre os dois sexos.
Se nos primeiros tempos a caça e a guerra contribuíram para esta situação de «abandono» do lar por parte do homem, o mesmo já não se pode dizer de épocas mais recentes, em que se verificou uma saída massiva para os centros laborais. Com efeito, por volta de 1850, comerciantes ingleses passaram a recrutar mão-de-obra para as plantações do Natal, facto que obrigava a ausências prolongadas. Do ponto de vista dos chefes africanos, a exportação de mão-de-obra era vantajosa, pois o pagamento do tributo podia ser extorquido por um chefe quer aos súbditos, quer àqueles que atravessavam as suas terras. Mas esta situação tinha também as suas desvantagens conforme veremos mais adiante. No plano do casamento, deve datar desta época a mudança de atitude devido ao trabalho migratório:
[…] o controlo que a aristocracia dominante e os chefes subordinados tinham sobre o montante da compensação matrimonial (lobolo), veio proporcionar-lhes […] o aumento do montante recebido, quer em gado, quer em produtos ou em dinheiro. Por isso, tanto para a aristocracia real como para os chefes das linhagens subordinadas, existiam vantagens no envio de mão-de-obra para o Natal.22
Com a abertura de minas de diamantes em Kimberley, e mais tarde de ouro em Lydenberg, a migração da força de trabalho para a África do Sul sofreu um grande impulso. Rapidamente, Lourenço Marques tornou-se num local de trânsito de recrutadores e equipamento para as minas e começou a funcionar um serviço regular de barcos a vapor.
Os efeitos deste desenvolvimento foram vários: o crescimento dos empreendimentos comerciais em Lourenço Marques, incluindo a construção de lojas armazenistas e de hotéis; a escassez de mão-de-obra no interior de Moçambique porque os salários eram mais atractivos nas minas; a expansão da rede comercial do interior largamente controlada pelos asiáticos e que absorvia os salários dos mineiros; a mudança dos hábitos dos povos da zona; o despovoamento de algumas regiões como Matola, de onde um grande número de famílias se deslocou para Moamba e Swazilândia. Nessa época, por volta de 1875, as autoridades portuguesas ainda não tinham o controlo político do território capaz de impedir o livre-trânsito de migrantes no sul de Moçambique.
No período que se seguiu, entre 1895 e 1900, a economia política da região sofreu profundas transformações estreitamente relacionadas umas com as outras23. Impulsionado pela abertura de novas minas de ouro, o desenvolvimento que marcou esse período caracterizou-se pela construção de linhas férreas, pelo aumento da procura de mão-de-obra (e consequentemente a escassez da mesma), pela adopção de medidas para regular o fluxo e restringir a mobilidade dos trabalhadores (lei do passe) e a resistência dos Estados africanos.
A construção da via-férrea Lourenço Marques-Transvaal, em 1886, aberta ao tráfego no ano seguinte, constituiu um pólo de atracção de força de trabalho. Problemas nas construções levaram a constantes reparações. Por isso, só em 1894 a linha estava finalmente ligada ao sistema de caminhos-de-ferro do Transval e pronta para funcionar regularmente. Dados indicados pelo já citado livro História de Moçambique 24 apontam que nesta fase o trabalho migratório absorvia cerca de 25 mil trabalhadores por ano, 12 mil dos quais provenientes do interior de Inhambane. O rápido aumento de emigrantes levou a um maior poder de compra destes trabalhadores. Daí um novo ímpeto nas trocas que se traduziu na consequente expansão do comércio já estabelecido na zona pelos asiáticos e no aumento do volume de importações de roupas, álcool, armas de fogo e munições.
As perspectivas de uma exploração colonial mais extensa, intensa e lucrativa estando abertas, em 1888 Portugal reafirmou os chamados “Termos de Vassalagem” junto dos Estados entre Lourenço Marques e o Limpopo, e de Maputo, iniciando deste modo a implantação político-militar. Face à enorme crise de mão-de-obra em Lourenço Marques, foram instituídos regulamentos de trabalho na cidade estipulando rígidas leis sobre a mobilidade diária, liberdade de emprego e salários dos trabalhadores africanos, constituindo as primeiras medidas ostensivamente discriminatórias. A luta pelos mercados locais no sul de Moçambique levou à humilhação dos portugueses, uma vez que Rhodes e Ngungunhane haviam assinado um tratado relativo a direitos sobre minérios. Temendo o controlo do território de Gaza, sob maior influência britânica, e receando a manutenção da independência das chefaturas locais, o dispositivo militar português começou a ocupar postos estratégicos no terreno. Ao mesmo tempo e um pouco mais tarde, incluíam nos seus planos pôr em jogo as contradições entre os diversos chefes do sul do Incomáti, bem como desestabilizar as povoações pela táctica da «terra queimada» (queimar colheitas e povoações). A primeira etapa da investida foi Marracuene, batalha ganha pelos portugueses com muita dificuldade. Logo a seguir, Moamba e Matola aliaram-se aos portugueses e atacaram Zihlahla e Mabjaia, que se refugiaram em Gaza. Gaza foi por sua vez atacado e desmantelado, não sem que este reino tivesse oferecido resistência.
O processo de destruição política dos velhos Estados prosseguiu com a nomeação de régulos, forma de «integração» das instituições tradicionais na hierarquia da «coroa» portuguesa. Em Maputo, Moamba, Matola e Tembe, os régulos eram membros da antiga linhagem real, mas agora responsáveis por partes do respectivo reino perante a administração colonial. As obrigações do régulo consistiam na indicação de trabalhadores e recrutas (para o exército colonial), na colecta do imposto de palhota, no controlo do imposto do movimento de pessoas no regulado, no impedimento do comércio de bebidas alcoólicas, com excepção dos vinhos portugueses, e na cobrança de uma taxa aos mineiros regressados. Desta maneira, o régulo podia, por um lado, obter benefícios consideráveis pela sua aquiescência ao trabalho migrante, e por outro lado, pela manutenção da lei consuetudinária. Nestas condições, o régulo era um essencial aliado colonial na aceitação dos mecanismos da exploração.
Maputo e outros reinos a sul do Limpopo tornaram-se circunscrições, com novas formas de subserviência, incluindo a obrigatoriedade de trabalhar gratuitamente 15 dias por ano para o governo português. Por outro lado, a criação da Witwatersrand National Labour Association (WENELA) permitiu à administração colonial não só ter finalmente o controlo sobre a emigração da força de trabalho para a África do Sul, como também tirar proveito dessa regulamentação. No período que vai de 1900 a 1930, o poder colonial consolidou a sua posição no sul de Moçambique, mas não conseguiu solucionar o problema da falta de mão-de-obra. Para inverter a situação, foi promovido um sistema de trabalho paralelo ao trabalho migrante: o chibalo, ou seja, o trabalho forçado:
O sistema do chibalo foi montado com base na pilhagem e utilização abusiva do campesinato. Forçado a trabalhar para poder pagar o imposto e evitar a prisão, o trabalhador foi engajado sem direitos de espécie alguma. O pagamento dos salários podia ser diferido ou negligenciado por períodos longos, segundo o capricho dos patrões; alguns proprietários rurais adoptaram a táctica de maltratar os trabalhadores no último mês de trabalho de modo que, se eles fugissem, evitavam, assim, pagamentos de qualquer ordem.25
Depreende-se que o objectivo deste sistema era assegurar o fluxo contínuo de trabalho migrante a baixo preço. A fuga às condições do chibalo para mais elevados pagamentos nas minas, foi portanto uma consequência normal no sul de Moçambique. O devir da sociedade ronga ficou deste modo dependente e um pouco à mercê da administração colonial, que mexia com a sua estrutura.
Com a ascensão do regime salazarista em Portugal, em 1929, novas relações de dominação económicas começaram a verificar-se a partir dos anos 30, das quais salientámos a intensificação da exploração nas zonas rurais. A nível da cidade de Lourenço Marques a agudização dos conflitos sociais no porto levaram a várias paralisações do trabalho. O reforço das medidas aculturativas manifestaram-se também nas formas de enquadramento colonial:
[…] a política de ‘assimilação’, mesmo no sentido restrito, de levar a população, através da educação, a participar numa cultura europeia e a gozar os direitos de cidadania do ‘império’ português, não deixou de ser uma justificação teórica para a presença colonial, cuja estrutura de dominação racial, na prática, impediu tal acesso.26
Após a independência de Moçambique, a estabilidade das populações e sobretudo a perpetuação das suas tradições, foram imensamente abaladas pela guerra. Sendo ainda difícil de avaliar os danos culturais, Alcinda Abreu considera no entanto que a guerra provocou mesmo a perda de valores:
A guerra que obriga a uma migração constante da população é [era] […] o principal factor de desagregação da família, senão mesmo o factor do seu desenraizamento. A terra familiar já não é o ponto de referência (para muitos adolescentes e jovens) à volta do qual a família sobrevivente pode voltar a recompor-se, onde a ligação profunda, quase genética, desta criança com o passado é em muitos casos irrecuperável.27
Vimos que a cultura ronga, rica na multiplicidade das suas formas e manifestações, construiu-se na interacção com as culturas de outros povos. Pela situação evidenciada, podemos afirmar que nesta região com condições geográficas das quais resulta, em parte, viver um grande número de habitantes dedicados a várias actividades, há muito ensejo para contactos humanos que são, juntamente com a procura de emprego e as guerras, responsáveis por grande parte da interpenetração cultural e linguística. Essa «aculturação» processa-se lentamente nas zonas rurais, onde vive a maioria da população autóctone.
Depois destas apreciações sobre a cultura ronga, impõe-se-nos uma abordagem da relação entre o meio ora descrito e a trajectória do escritor, que afinal reivindica alto e forte as suas origens.
[...]
1 Com sede em Paris, o CIES era a designação da instituição que se ocupava da gestão financeira dos estudantes estrangeiros bolseiros do governo francês e da sua integração pedagógica e cultural. Actualmente, o organismo mantém a mesma vocação tendo apenas mudado o nome para EGIDE.
2 Por exemplo o Boletim do Governo da Província de Moçambique. Alguns anos mais tarde surgiu a Revista Africana.
3 Sobre o conceito de assimilação aplicado a Moçambique, ver detalhes nas páginas 21, 40, 41, 42 e 43.
4 Cf. RIBEIRO, Daniel, “Moçambicanos editados em Paris”, in Jornal Expresso, Lisboa, 31 de Dezembro de 1994, p.4.
5 Cf. Mapa da expansão Bantu p. 87.
6 Sobre os grupos considerados mais antigos da África Austral cf. PAULME, Denise, Les civilisations africaines, PUF, coll. «Que sais-je?», n°606, Paris, 1965, pp.59-72.
7 Cf. História de Moçambique - Primeiras sociedades sedentárias e impacto dos mercadores (200/300- 1886), Departamento de História da UEM, Vol. 1, Maputo, 1982, p.49.
8 A forma banto, como substantivo ou adjectivo, com flexão (-a, -os, -as), tem constado em algumas publicações e nas mais recentes obras (cf. por exemplo Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Texto Editora, 1ª ed., Lisboa, 1995, p.197). Mas nesta dissertação preferimos manter a forma bantu.
9 História de Moçambique, op. cit., pp.51-56.
10 Ibidem, p.61.
11 Cobrindo uma área de 167 787 quilómetros quadrados, o Sul do Save é a região sul de Moçambique que os historiadores têm analisado como um todo, devido às suas características semelhantes, e que compreende as actuais províncias de Gaza, Inhambane e Maputo.
12 Nascido por volta de 1845 perto de Chaimite, no vale do rio Limpopo, Ngungunhane chefiou o reino de Gaza de 1884 a 1895, tendo sido um dos grandes resistentes contra a penetração portuguesa. Derrotado, foi preso e levado a Portugal, acabando por morrer exilado nos Açores em 1906. Para outros pormenores cf. História de Moçambique, Vol. 2, pp.249-250 e o capítulo reservado ao Império de Gaza.
13 Cf. Mapa dos movimentos migratórios Ngunis, Sothos e Shonas p. 87.
14 RITA-FERREIRA, A., Presença Luso-Asiática e mutações culturais no sul de Moçambique (até c. 1900), Instituto de Investigação Científica Tropical/Junta Científica do Ultramar, Lisboa, 1982, p.75.
15 Poderes «consignados» ao chefe que permitem agir sobre a natureza, particularmente no desencadeamento da chuva, componente essencial da actividade agrícola.
16 RITA-FERREIRA, op. cit., pp.152-153.
17 Ibidem, p.131.
18 RITA-FERREIRA, op. cit., p.167.
19 Cf. Mapa da expansão Nguni p. 89.
20 Cf. “Mulher-Moçambique”, Bureau de Informação Pública, Maputo, 1994.
21 Constituição de 1990.
22 Cf. História de Moçambique - Agressão imperialista (1886/1930), Departamento de História da UEM, Vol. 2, Maputo, p.214.
23 Após a Conferência de Berlim, em 1895, os portugueses, receando a competição internacional pelo controlo político do território do hinterland de Lourenço Marques, viram-se obrigados a redobrar esforços com vista a ocupação efectiva do território.
24 História de Moçambique, op. cit., p.220.
25 História de Moçambique, op. cit., p.242.
26 Cf. História de Moçambique - Moçambique no auge do colonialismo (1930-1961), Departamento de História da UEM, Vol. 3, p.182.
27 Cf. ABREU, Alcinda António, “A família, a mulher e os direitos em Moçambique”, in Eu Mulher em Moçambique, CNUM/AEMO, Maputo, 1994, p.116.
- Quote paper
- Herculano Thumbo (Author), 1996, Estudo da Tradição Oral Africana em "O Regresso do Morto" de Suleiman Cassamo, Munich, GRIN Verlag, https://www.grin.com/document/493015
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